22 May 2010

Quase uma Tieta

Primeiro os devaneios.

Me sinto a personagem de Jorge Amado, quando retorno em cada cidade visitada em aulas de pós-graduação.
Me dá uma vontade louca de cantarolar alto, na chegada:
“estou de volta pro meu aconchego, trazendo na mala bastante saudade...”
Surtei: saudade? aconchego? Nada disso. Carrego expectativas, necessidade de cumprir novas obrigações profissionais, angústia por estar longe do meu trabalho, oficial, e medo de nunca ter um porto seguro, que me estimule a parar de viajar, e me aquietar em casa, em volta de uma mesa, para dois lugares, arrumação de um segundo quarto, não para visitas, mas para um baby bem bonzinho, como deve(rá) ser o papai, e bem inquieto como a mamãe que vos fala.
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Contexto real.

Como sempre acontece, fui a última a adentrar o ônibus, cerca de três minutos antes da partida para Bom Jesus da Lapa, cidade baiana onde há mais romeiros do que moradores. Apenas sete horas na estrada. Cheguei de madrugada. Muito rápido!
Sempre partia de Salvador, e eram longas treze horas até chegar nesta terra esquecida pelos deuses da chuva. Faz tanto calor que causa náuseas, vontade de ficar embaixo d’água ou então usar roupas térmicas, encharcadas de gelo, para suportar a temperatura ambiente.
Quem me lê por aqui, ou convive comigo, sabe o quanto exagero nas ideias, e muito mais quando estou distante do meu canto. Coloco uma lupa (imaginária) gigante. Tudo fica maior, ampliado, invisível a olhos normais, sem lentes de grau, como os meus.
Mas não gosto de escrever sobre clima, parte histórica, lugares exóticos ou curiosidades das regiões que visito. Gosto mesmo é de narrar os absurdos que enxergo, os diálogos insanos que escuto ou travo, com pessoas comuns. Parece que me entendem, que sabem do meu blog, e que os "disparates" descobertos serão usados para rechearem meus escritos.
Engraçado comentar isso. Raramente comento sobre, mas de fato, todos os enredos param aqui...amo muito despejar neste lugar, tudo o que experimento, tudo o que gera alegria, ou me incomoda.
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A situação mais estranha.

Eu tentava abrir uma garrafa de água mineral. Todos pareciam dormir, exceto eu e o cobrador do ônibus. Viajava na poltrona ao lado. Ele e sua maleta preta.
- Não conseguiu abrir?
- Não. Está muito duro. Minha mão ficou vermelha!
- Deixe eu tentar.
- Toma.
- Nossa,  está mesmo.
- Não disse?
Nesse momento, ele lançou mão da capa da sua poltrona. Tentou abrir. Só tentou.
Partiu para a terceira tentativa. Parecia que queria me provar sua missão de macho, provedor, apto a conseguir abrir latas e garrafas, trocar lâmpadas, ou consertar coisas.... Fiquei feliz, pelo sua insistência. Definitivamente, sou machista. Essas ações que exigem força e astúcia, são de fato, tarefas de homens. De homens alfas.
Enquanto eu pensava nessa teoria, ele pediu licença e colocou a tampa da garrafa na boca. Arregalei os olhos, mas concordei. Imagina se não concordaria. Ele então tentou abrir com os dentes, como um pitbul o faria, faminto, na tentativa de morder sua vítima.
Não conseguiu, claro. Mas sua marca canina ficou lá, evidente no plástico azul da garrafa da água. Juro que nem fiquei com nojo, ademais, o contato com a água nem aconteceu!
Parecia ter desanimado. Eu estava mais sedenta. Me imaginei sozinha, com muita sede, no deserto, com essa garrafa. Eu e 'ela', lacrada. Iria enlouquecer.
Enquanto isso, meu “magaiver”, disfarçado de cobrador, abriu sua maleta preta. Retirou dela uma das suas ferramentas: uma tesoura de cortar unha. Eu ria internamente, cada vez mais impressionada com o esforço para agradar uma desconhecida. Alfa, ele é um alfa.
Analisou cuidadosamente a estrutura da tampa, e pronto: conseguiu desenroscá-la e me devolver com o conteúdo altamente sem sabor ou cor, mas com um líquido simplesmente vital, delicioso, para ser degustado com muita urgência.
Por último, foi assim:
Agradeci no escuro. A sede cessou. Concluí que sou uma sortuda mesmo. Tenho água, tive um solidário comparsa, cheio de talentos, ao meu bel prazer. Depois desse episódio, nem consegui dormir. Nasceu esse post só pelos meus pensamentos, embalada pela velocidade do ônibus convencional, sem ar, sem conforto, muito barulhento. 
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Sigo, como sempre, com muita força nos sonhos. Elba Ramalho está na torcida.
"me alegro na hora de regressar, parece que vou mergulhar, na felicidade sem fim..."

4 comments:

  1. Um homem preparado para as adversidades de uma viagem, sem dúvida.

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  2. Chorei de tanto dar risada...
    Ju, você está cada vez melhor!
    Beijinhos,
    Mari

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  3. Como já te disse antes, sou um sortudo de ter te conhecido, como disse nossa amiguinha acima, vc está cada vez melhor mesmo!!!
    Parabéns Ju!!! Bjão...

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  4. Cada um aqui tem um peso, um valor, um mundo de contribuições para eu me tornar cada dia mais blogueira! Obrigada pelos mimos e estímulos!

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