18 November 2011

Milésima viagem terrestre

Computei todas. Devem ser mais de mil. Ou menos. Mas faz de conta que é esse número redondo e grande. 1000. Cheio de zeros e estórias. Cheio de significados. Carregado de encontros e despedidas. Entupido de atrasos no embarque. Outros tantos de desembarque.

Quando penso que já me acostumei com a vida de passageiro dentro de um ônibus, me surpreendo na próxima viagem. E quando tenho certeza de que nada mais estranho, ou no mínimo inusitado, vai me ocorrer, eis que perco a fé no sentido do que define a palavra previsibilidade.

E foi assim que vivi a viagem de número 1000, num trecho interestadual entre Salvador e Vitória da Conquista . Me acompanhe, viajante.

Quando adentrei o ônibus, procurei meu assento e me dei conta de que ao meu lado estaria uma freira, e que me acompanharia por longas 8 horas. Fiquei sem saber como cumprimentá-la e se travaríamos algum diálogo. Sabia que não precisava perguntar o que ela fazia dos seus dias. A vestimenta falava por si. Fiquei pensando se ela saberia o que eu fazia dos meus dias, apenas baseando-se nas minhas roupas. Claro que não. Supostamente poderia pensar: alguém que sabe que vai enfrentar dolorosos 20 graus, estrada afora, tamanho o arsenal de casacos, meias e cobertores milimetricamente cobrindo tudo, exceto o rosto e um par de olhos curiosos.

Se ela pensou assim, acertou em cheio. Não é que sou essa pessoa? Mas claro, não sou só isso, assim como ela não é somente uma 'serva' da igreja. Deve ter vida própria, ou pensamentos próprios. Deve ter um modo particular de ver o mundo. Com lentes diferentes. Mas isso, cá entre mim e você, leitor(a), também temos essa visão individualizada sobre tudo que nos cerca!

Esses meus pensamentos tortos me enlouquecem. Difícil voltar normal após uma viagem longa com estranhos. Sempre saio de uma catarse, quando coloco os pés para fora desse transporte. Curiosamente, fico em silêncio. A escuta fica mais aguçada. A visão, dez vezes mais ampliada e o olfato, apuradíssimo. Me distraio com ruídos, cheiros e conversas alheias. Me vejo olhando pros lados. Como as pessoas dormem. O que comem. Como os bebês choram. Como as crianças pedem coisas e como os adultos lidam com elas.

Fico tentando intervir em tudo, mas calada permaneço, observando e checando a estrada, o som que vem da cabine do motorista e suas freadas bruscas, que assustam e me fazem imaginar algum acidente na estrada ou sei lá, um terremoto próximo.

Sei que diante desses fios de pensamento, a freira estava ali. Presa na minha imaginação. Queria conversar com ela. Pedir conselhos. Me imaginei num confessionário, forçado e gratuito. Mas daí pensei: ela não é um padre! Não vai me indicar caminhos, nem me mandar rezar novenas ou dezenas de terços. Pode ser que tenha essas mesmas atribuições, ou seja como aquelas avós e tias queridas, as adoráveis, que nos enchem de sabedorias, com suas vastas experiências.

Silêncio completo ao meu lado. Desisti de tentar uma aproximação pelo meu olhar de súplica. Me rendi aos filmes que um passageiro sem noção nos presenteou. Foram exatas 8 horas de projeção com 4 filmes retratando aventuras com vampiros, lobos e afins. E guerras. E lutas. Muito sangue. Mais cenas violentas.

E nada daquela mulher compenetrada se render e soltar um comentário. De onde eu podia enxergar, os seus olhos reviravam raivosos e escandalizados. Ou eram os meus? Não sei. De tanto pensar, fiquei com vontade de pedir para interromper as projeções. Queria preservá-la de produções cinematográficas tão medíocres. Mas em silêncio permaneci. Provavelmente para me tornar sua cúmplice, em algum sentido.

O destino final chegou primeiro para ela, que desceu e sequer me disse "tchau". Não me dei por vencida. A vontade de (ainda) ser ouvida por alguém que muito medita e clama por paz, me fez romper minha mudez e lhe dizer um "até breve". Apenas me olhou e partiu. De novo, me vi só. Eu e meus botões.

6 comments:

  1. Às vezes é melhor assim. Dar corda à imaginação e passar o tempo pensando em "como seria" do que pagar pra ver "qual é". Assim com a freira, assim com tanta gente por essa viagem que é a vida. Tem todo uma filosofia escondida nesse seu texto, amiga viajante. Gostei demais. Agradeço os comments no facebook e no meu blog. Um beijo e boa semana.

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  2. Marcelo, querido, adoro saber que está por aqui por prazer... um abraço e manda uma paçoquinha virtual, pra mim...risos...

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  3. Elas aprendem a praticar o silêncio, coisa que nós,pecadores, faladores, ainda não sabemos fazer.

    bj, Ju.

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  4. Lindo Texto! Me fez pensar um monte de coisas...
    Beijo,
    Mari

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  5. Patiinha, é verdade...falamos demais... aprendemos menos... bj!

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  6. Mari, você passageira de viagem número 10000 também sofre calada? Nada... vc dorme antes de o ônibus sair da cidade!!! Risos.. Bj

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