28 October 2013

"não tem ninguém ao lado"

Poderia ter me concentrado no prato à minha frente. Ou meditar a partir das marteladas da construção, de uma nova área, naquele mesmo restaurante. Também poderia tentar ouvir o jornal de meio-dia. Poderia ter apreciado mais o bacalhau e suas postas, em meio às cebolas e batatas cozidas. Poderia apenas me concentrar em meus pensamentos, que não me abandonam nem nos horários das refeições. Mas não, lá estava eu, prestando atenção em cores, não aquelas de Almodóvar, nem as de Frida Kahlo, como musicou lindamente Adriana Calcanhotto. Eu não fiz nada disso.
Fui fisgada pelo olhar alheio de um desconhecido. E ali permaneci.
Ele devia estar na faixa dos sessenta e muitos, beirando a nova década. Vestia branco, inclusive na tonalidade de seus cabelos, já tão esvaziados pelo meio. Como estava me olhando muito, eu alternava com ele, e com as garfadas, os olhares. Não sei o que é ser paquerada por homens mais maduros. Sempre despertei a curiosidade masculina entre os mais verdes. Não que isso seja bom ou ruim. Apenas tem acontecido.
Desta vez, parece que despertei algo, num ser solitário, que parecia comer por obrigação, sem vontade, sabe? Aparentava estar cansado. Uma tristeza, também. Fiquei imaginando aonde estaria sua família. Talvez morasse longe, e por isso optou almoçar mais perto do trabalho. À primeira vista, me parecia um médico, pelos trajes. Mas poderia ser apenas o gosto pela cor branca. Nos pés, sapatos e meias marrons. Fiquei pensando que gosto mais de médicos que usam sapatos escuros que claros. Me dá uma sensação de que são mais normais, ou mais humanos. Bobagem, isso.
Enquanto eu corria solto em meus devaneios, ele continuava me olhando, com o mesmo entusiasmo do primeiro momento, na fila das ofertas do cardápio, num restaurante self service. Não suporto mais comer pesando alimentos. Até gosto de me servir, mas é cada dia menos prazeroso comer sozinha.
Pensando nisso, pensei em convidá-lo, mas fiquei apreensiva. Ele poderia achar que o caminho estava aberto e que eu estava ali, disponível para um café depois do almoço, ou um jantar mais tarde. Juro que não estava afim de seduzir, ou de ser seduzida. Só queria escutá-lo falar sobre sua rotina, suas preocupações, seus medos, suas alegrias ou suas dores.
Enquanto viajava nas possibilidades do diálogo que poderiam acontecer entre nós dois, ele finalizou sua refeição e retirou do bolso da frente, um extrato bancário de duas páginas. Correu com os olhos pelas cifras ali contidas. Eu fiquei caducando para me lembrar da última vez que fiz o mesmo. Não sou de impressões. Vejo tudo em telas. Amplio, anoto. Mas imprimir, só em último caso. Ele, pelo visto, senhor de outros hábitos mais tradicionais. Seria a diferença de idade? O desejo de ter segurança no que ali estava no papel? Não sei.
O tempo voou. O horário findou. O bacalhau estava delicioso. O olhar na mesa em frente à minha, me dizia que ali habitava um ser inconformado com as distâncias. Ele tentou se aproximar. Eu fingi que não percebi. Nos dirigimos ao caixa de pagamento, ao mesmo tempo. Cada um fuzilando o outro com olhos curiosos.
Em meio aos meus devaneios, fitar esse estranho me fez lembrar os meus tios, que estão na mesma faixa etária. Me dei conta ainda, enquanto aguardava a minha vez de pagar, na fila, que envelhecer é um processo [penoso] e, talvez, idêntico para todos nós. Pensei na solidão que há em meus tios, em todos os velhos, e que também já mora em mim. Me senti cúmplice de todos eles, emaranhados em meus pensamentos.
Eu espero que para além do branco, as multicores da primavera possam alegrar aquele sujeito de olhar tenso e tão intenso. E foi assim que, após longos trinta minutos, nos separamos e seguimos caminhos distintos. Cada um para um lado. Sem despedidas ou gorjetas para os garçons. E sem o prazer de poder degustar um bom café, com um suposto novo amigo, que gostaria de ter conquistado, num dia de segunda-feira.

Título e referência à música Esquadros, de Adriana Calcanhotto, do Álbum Senhas (1992)

24 comments:

  1. Intenso mesmo, uma verdadeira viagem!!! Cada dia melhor em descrever seu olhar!! @.@

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    1. Obrigada, sobrinha! Adoro conviver contigo também pela escrita. Beijo!

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  2. Osvaldo via gmail29 October 2013 at 19:57

    Oi Jusciney,

    Seus textos me impressionam pela leveza e pelo modo como demonstram sensibilidade.
    Já pensou em escrever na terceira pessoa?

    abração,

    Osvaldo

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    1. Olá Osvaldo... obrigada pelo elogio e pela leitura... eu tenho alguns já escritos... engraçado comentar isso, porque nos textos acadêmicos eu não escrevo na primeira pessoa, já os literários... a maioria são na primeira pessoa, sim...... são como diários... risos...
      Segue um que catei, pra ver se levo jeito... veja:
      http://foiassimdoispontos.blogspot.com.br/2013/03/no-dia-em-que-o-sorriso-sumiu.html#more

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  3. Adorei.Poderia isso,poderia aquilo...prende a atenção da gente,muito bom!E os detalhes?Pena que o personagem do coroa não subiu ao palco!

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    1. Por falar nisso, bem que poderia passar uns dias de verão aqui em Maceió, né? Vai que nos esbarramos com o coroa de novo?? Risos... beijo, linda!

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  4. Oh, Juba, espero que este comentário fique. O blogger nunca me deixa postar aqui, nunca faço rascunhos também. Sua escrita lhe acalma e acalma a quem lê. Imaginei toda a cena do senhor querendo se comunicar (não necessariamente paquerar), carência de gente que viveu muito e quer falar um pouco, dividir um pouco, tá bem, paquerar talvez. O extrato, ai, ai, eu nunca mais imprimi um com medo de ter um piripaque... Nem vem falar de velhice que acabei de fazer aniversário e estou fragilizada com relação ao assunto. Uma ruga apareceu onde não havia antes, logo no dia seguinte, e uns fios de cabelo branco insistem em não aceitar tinta mais. O tempo, desse eu gosto. O passar do tempo, esse eu gosto mais ainda. Vamos ver até onde esse caminho vai ou até onde vamos conseguir chegar nessa caminhada toda. Te amo! Continue inspirada e inspirando ;) Bjss

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    1. Não vou nem explorar o tema da velhice mais, chegando sorrateira, em nossos dias... deixa quieto... risos... beijo, amiga! Também te amo... nada de dor na nuca, mais! :)

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  5. sempre comento e perco de vista o post rs rs rs mas adorei,prendeu minha atenção o tempo todo,pena que o personagem do coroa não sobe ao palco!!! bjs

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    1. Mais do ganhar vida numa quase crônica? O que seria subir ao palco? Me convidar para um jantar?? risos... beijo!!

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  6. Amiga, como tenho prazer em ler o que você escreve!!!! Leitura deliciosa!!! Beijos!!!

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    1. Que bom ter você aqui, me prestigiando... venha mais vezes... beijo!

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  7. Fabíola T. via FB30 October 2013 at 11:03

    Muito boa. :)

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    1. Obrigada Fabí, pela leitura e comentário. Beijo!

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  8. Heliana F. via FB30 October 2013 at 11:05


    Prima!!!!!!muito bem. Bjs e uma excelente semana.

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    1. Gostou?? Saudade Heliana Ferreira.... não é que me lembrei de você, com o bacalhau?? Risos...

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    2. Heliana F. via FB30 October 2013 at 11:06

      ..onde tem uma boa comida, sempre sou lembrada...o que será????..as meninas estiveram aqui em casa com tia Nalva. Tomamos aquele café...com direito a sopa e altos papos...foi ótimo. Bjs.

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    3. Delícia... Ilhéus está dominada pelos nossos... risos... amooooo

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  9. Bem, se não houve a intenção de seduzir, deve ter sido só do seu lado...
    rsrsrs
    beijão, Ju.

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    1. hahahaha... creio que não... já pensou se todo mundo que nos olha diferente está querendo seduzir? Ele me pareceu mais gente boa que um simples garanhão... risos... beijo, amiga!

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  10. Que viagem, Ju! E teoricamente foi uma situação tecnicamente simples mas acabou gerando um longo pensamento e um ótimo texto. Adorei. bjssss

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    1. Obrigada! Bom de se viver e melhor ainda, de se escrever! Beijo

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  11. Márcia M. via gmail9 November 2013 at 16:14

    JU, como esta?

    Estou aqui na sua cidade, Itarantim, vim fazer o concurso daqui. Tenho me lembrado tanto no ano que passei o São João aqui com vc...

    Amiga, não sabe o quanto tem me ajudado com suas escritas, eles tem feito com que eu não perca a esperança e continue acreditando na vida e nas coisas naturais e belas dela.

    Sou psicologa e meu sonho e deitar no seu Diva, rs.

    Beijos.

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    1. Que delícia isso... ser lembrada na escrita e em minha terra natal! Bom demais tanto carinho, amiga! Vamos marcar esse momento terapia e boa sorte no concurso! Bj

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