6 April 2014

eu CURTO vestido CURTO

Nos idos anos 90...

Éramos namorados e tudo indicava que seríamos marido e mulher dali a pouco. O verbo no passado não é só sugestão. O noivado não prosseguiu por uma série de motivos, todos bem justificados. Mas, em uuma noite de inverno, começamos uma briga feia, não sei bem porquê. Talvez pelo ciúme costumeiro dele. Talvez pela minha implicância em insistir ser do contra, quando o assunto diz respeito à minha liberdade para ser do jeito que eu sou, ops, do jeito que eu já era, lá atrás.
- ou ela ou eu!
- hein?
- isso mesmo... ou sua minisaia ou eu.
pensei por 2 segundos e gritei alto:
- ELA!!!!!!!!!!!!!!
- O QUE??
- isso mesmo que você ouviu. Eu fico com ela. Eu não preciso continuar com você, se acredita que a minha roupa é um problema. Não vou deixar de usá-la. Para mim está acabado.
(...)
Alguns muitos anos se passaram e nos tornamos amigos. Ele me confidenciou que aprendeu com a situação. Deixou de ser ciumento.
Eu não acreditei muito na mudança. O jeito de comportar-se diante das mulheres continuava apontando para o seu machismo nada oculto. Eu continuei com o meu guarda-roupa e segui acreditando nisso: somos o que desejamos ser. Não perdi nada. Me livrei de outros dissabores, quiçá, de doses de violência verbal ou até física.

Nos dias atuais...

O barzinho com música ao vivo estava apinhado de gente. O burburinho de brindes e vozes eram contagiantes. Impossível ficar triste ou cabisbaixo com tanta gente animada e "azaração" por todo lado. Eu percebi que o cara da mesa ao lado, que estava sozinho, não parava de me lançar olhares. Eu correspondia à paquera, porque queria ver como ele agiria para se aproximar. Gosto de perceber as atitudes assim, quando ainda duas pessoas são desconhecidas.
Ele fez sinal para eu me dirigir ao banheiro.
- O QUE??
Ele fez uma negativa com a cabeça, chateado com a exposição. Provavelmente era tímido.
- ah, ok.
Fui, então, ao banheiro, para tentar entender isso melhor. Ele me seguiu, imediatamente.
- oi!
- isso lá é um bom lugar para um primeiro encontro?
- eu sou tímido!
Bingo.
- ah...
- e você não precisava ter gritado "O QUE?"!!!
- ah, você achou errado?
- sim, eu fiquei envergonhado...
- desculpas!
- vamos sair daqui...
- ah, sim, seria bom...
- e aí?
- e aí, o que?
- e você, está com um short embaixo desse vestido curto?
Ao invés de falar, arregalei os olhos.
- o que foi?
- nada...
- não vai me responder?
- ah, sim... quer dizer, não, não estou com short algum por baixo do vestido.
- sério?
- sério...
- mas é muito curto!
- mas você achou bonito?
- achei...
- e?
- e se você fosse minha namorada eu não deixaria você usar esse vestido.
- ah... mas não sou.
(...)
Obviamente me lembrei da discussão de décadas atrás e a conversa não rendeu. Eu voltei ao meu lugar de origem, sob pena de continuar dando munição para tipos absurdos como esse sujeito.
A origem de todo esse machismo eu nunca pesquisei. Mas condeno, abomino e combato, mesmo que a vítima não seja eu.
Por falar nisso, a recente pesquisa do IPEA apontou que para 65% mulher de roupa curta merece ser atacada. Depois fizeram uma errata e informaram outro percentual: apenas 26%!!!! Apenas? Faça-me o favor: me bata um abacate! "Nada ficou no lugar", diria uma musiquinha fofa de uma mulher desesperada para chamar a atenção da sua paixão. E cá entre nós, violência que venha de palavras ou corpos, não nos emancipa. Seja de que lado for. Melhor lutar por dias com mais paz e menos machismo.


A música citada "Mentiras" é de autoria de Adriana Calcanhotto e faz parte do Álbum Senhas (1992)


8 comments:

  1. Título para lá de sugestivo. Antes mesmo de enveredar nos diálogos deixei os impulsos falarem por si, rs. O discurso machista acarreta no sexo oposto uma defesa cruel, que impede qualquer tipo de aproximação; é realmente preciso combater qualquer tipo intolerância e pré-disposição à violência.
    Por outro lado, sútil mesmo é tua escrita, que me impressiona cada vez mais. Cheiro, moça.

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    1. Obrigada, Jairo. Você é um ser humano incrível, sensível e generoso. Te admiro muito. Beijo!

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    2. Porque vc transmite tudo isso. Te admiro demais. Cheiro.

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  2. Curto vestido curto e o texto inspirado por ele. Muito bom, amiga viajante. Um beijo.

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    1. risos... obrigada, querido! Outro beijo!!

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  3. Machismo é podre, mas consegue ficar ainda pior vindo de uma mulher. E, não sei não, mas achei esse erro tão providencial, afinal, a imagem do país estava sendo destruída com essa pesquisa. E é ano de Copa... Enfim, mas ainda assim 26% é mta coisa. Triste. bjs

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    1. Verdade, Sérgio. Mas penso que machismo é um absurdo de qualquer jeito, vindo de homem ou de mulher. Vamos torcer para que esses nós se desfaçam... beijo!

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